O laicismo e a questão religiosa em Portugal, de meados do século XIX à primeira década do século XX

Lamentava não poder acender as fogueiras da Inquisição! – Assim aquele inofensivo moço tinha durante horas, sob a excitação colérica duma paixão contrariada, ambições grandiosas de tirania católica: – porque todo o padre, o mais boçal, tem um momento em que é penetrado pelo espirito da Igreja ou nos seus lances de renunciamento místico ou nas suas ambições de dominação universal (…)” In O Crime do Padre Amaro (Eça de Queirós)

    O processo político que levaria à implantação da República em Portugal, em 5 de outubro de 1910, está inelutavelmente ligado à questão religiosa, iniciada na época pombalina e que permanecera durante a vigência do liberalismo monárquico oitocentista. Num país onde a liberdade de consciência não existia e as confissões minoritárias eram perseguidas, ou marginalizadas, o laicismo, como vertente ideológica,  aparece como ponta-de-lança de um projecto global de mudança da sociedade, no plano político, social, cultural, simbólico e “espiritual”. 

   O caminho que levaria à afirmação do laicismo em Portugal foi complexo e duradouro, visto que ao longo de todo o século XIX os liberais, os republicanos e os socialistas manifestam o seu anticlericalismo, ainda que na expressão de matizes diferenciadas pelas suas próprias ideologias. Enquanto que os liberais são essencialmente anticongregacionistas, os republicanos e os socialistas opõem-se ao próprio clero secular e colocam em causa a própria religião como sistema de crenças. O positivismo e cientismo, planos de afirmação metodológica subjacentes à própria laicidade, ajudam a romper com a visão católica do mundo e opõem-se ao neotomismo divulgado durante o pontificado de Leão XIII. Por outro lado, a questão religiosa ganha dimensão política porque a ideologia republicana (e socialista) vê a Igreja como um dos sustentáculos da Monarquia, na medida em que esta legítima e reforça o poder estabelecido. Assim, no quadro da contestação anti-clerical está a Igreja identificada com a reacção e com o legitimismo. Quanto às implicações sociais e culturais da questão religiosa, a mesma suscitou um renovado debate na década de oitenta e nos princípios do século XX, em virtude da emigração de religiosos expulsos de França e emigrados para Portugal. Nesta decorrência a salvaguarda da privaticidade da família, a vigilância perante as tentativas de criação de um partido católico acompanhada pelo interesse em se “pugnar pelo ensino obrigatório, gratuito e laico” (CATROGA, 2000:9-217) tinham-se como questões centrais no sentido de se garantir a neutralidade religiosa do estado e dos actos essenciais da vida individual. O anticlericalismo apoiar-se-ía, assim, no dogma do individualismo, e aderia aos grandes princípios como a liberdade de pensamento, a separação do religioso e do profano, a independência do estado em relação às igrejas e a recusa da ingerência dos eclesiásticos, da Cúria romana e das ordens religiosas (ultramontanismo), na sociedade. A denúncia do celibato eclesiástico e da confissão, por agressivas dos valores “naturais” do homem e da privaticidade das famílias, assim como factor de controlo societário, são expressas, de forma veemente, nos meios culturais laicos a partir de 1870. De entre estes sobressairia  a evolução de um anticlericalismo liberal, ainda crente numa renovação católica, para um radicalismo anti-clerical acirrado pelas deliberações do Concílio Vaticano I. Alguns autores, como Sampaio Bruno, ainda tentam visão conciliatória entre os princípios da modernidade e a religião, denunciando o ultramontanismo e não o credo católico ou o sacerdócio como factores de maior antagonismo “evolucionário”, admitindo a possibilidade de se edificar uma igreja socialmente útil e de cariz essencialmente nacional. Neste quadrante, haveriam de vingar as propostas mais radicais, que inspiradas nos ensinamentos da ciência se propunham “(…) laicizar o conhecimento, a natureza, a sociedade e a vida tornar a escola gratuita e laica, dessacralizar o padre, civilizar os ritos de passagem” (CATROGA, 2000-9-226), afectos a um movimento mais amplo de descristianização da sociedade. 

   Na conjuntura pós-revolucionária, o Governo Provisório leva a cabo uma política laicizadora que se apresentava como a concretização das ideias defendidas nas últimas décadas do século XIX. A concretização das leis pombalinas (contra os jesuítas)  no sentido da proibição das ordens religiosas, a laicização dos antigos feriados religiosos, o fim do juramento religioso, a supressão do ensino das doutrinas cristãs nas escolas e a extinção da Faculdade de Teologia, entre outras, são algumas dessas medidas-modelo de um projecto global de laicização da sociedade. A instituição do casamento civil e a anuência legal do divórcio são a antecâmara vigente da Lei de separação do estado das igrejas, vértice da nova legislação laicizadora. Esta questão já tinha sido levantada por diversas vezes durante a vigência da Monarquia Constitucional, porém não interessando nem à igreja apoiada no poder civil, nem ao estado que a utilizava como instrumento de coesão social e de controlo, acabaria por ser sucessivamente objectada. Governamentalizada pelo poder político, a Igreja beneficiava da sua protecção e do seu apoio financeiro, enquanto o catolicismo funcionava como elemento estruturante do próprio regime político. Proclamada a plena liberdade de consciência para os cidadãos portugueses e residentes estrangeiros em Portugal, punha-se fim, através do Decreto de 20 de abril de 1911, ao catolicismo enquanto religião do estado e autorizava-se as confissões religiosas minoritárias a professarem legalmente a sua fé, desde que tal não pusesse em causa as instituições e as leis da República. A gestão da vida religiosa passaria, desde então, a ser confiada às associações cultuais, deixando o estado de subsidiar o catolicismo. Passa, de igual modo, a subsistir todo um panorama simbólico que visa a desafectação dos antigos símbolos religiosos agora convertidos em referências do estado laico e da religiosidade cívica: o registo civil, os feriados civis, comemorações de carácter nacional ou de classe, as estátuas, os bustos, as moedas e a consagração de uma nova bandeira e hinos nacionais. Esta relevância do simbolismo na nova vida nacional é resultado da consciencialização das elites no sentido de recriar um novo consenso societário, traduzido, quiçá, numa tentativa de edificar uma nova metafísica nos limites do livre-pensamento ou preparar a sociedade para o advento do triunfo do cientismo. Se se consagra a existência de um estado laico, não deixa, contudo, de se manifestar nestas atitudes os resíduos de uma nova religiosidade. Este princípio não se manifesta numa religião institucionalizada e dogmatizada ou que se erigisse sobre as ruínas do cientismo, mas expressa-se na raiz antropocêntrica do seu ideário, tentando fomentar uma “(…) nova sentimentalidade e uma comunhão colectivas que ultrapassassem a frieza da linguagem denotativa das ciências através de expressões simbólicas de forte efeito sociabilitário.” (CATROGA, 2009-9-267). Assim, a República Portuguesa separava a religião da política e o laicismo, já triunfante no país, impunha-se na realidade portuguesa, não obstante as fortes resistências de grande parte da sociedade perante um projecto sustentando, no essencial, pelos livre-pensadores. A irradiação deste militantismo laico teria, assim, uma expressão limitada, já que se revelaria a jusante como a opção de uma minoria, de vanguarda iluminista e reduzida na sua expressão às grandes cidades, e aos estratos sociais mais alfabetizados.

BIBLIOGRAFIA:

CATROGA, Fernando. O laicismo e a questão religiosa em Portugal (1865-1911) – Análise social, Vol. XXIV. Análise Social – Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (em linha), 1988. (consult. 15 mai. 2019). Disponível na Internet:http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223029596W8bRF8ng3Ap22XN2.pdf

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Posted on 26 de Maio de 2019, in Justiça, Lisboa, Política, Portugal, Religião. Bookmark the permalink. Deixe um comentário.

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